Uma historinha

Tinha uns dez minutos que eu estava sentada ao seu lado. Ele fora cordial, embora não tenha sido caloroso. Era um senhor alto, elegante, com aquela idade indefinida que só os negros têm. Puxei assunto falando do tempo, depois do trabalho. Então ele se soltou e começou a contar da vida.
- É, eu trabalho aqui só pra não ficar parado e pra ganhar um trocadinho.
- O senhor já está aposentado?, perguntei.
- Já, minha filha. Comecei a trabalhar ainda menino, com doze anos. Eu trabalhava no almoxarifado da Federal, sabe? Outro dia um colega meu chamou pra fazer parte do coral de lá, que diz que viaja o país todo cantando e se divertindo. Num ganha dinheiro, mas eu tô bem com a aposentadoria. Só não dei sorte no casamento, viu?
Wallace contou do primeiro casamento, que acabara quinze anos atrás. Depois disso, ficou um tempo sozinho, morando com a mãe. Mas sentia falta d'um pescoço macio em que se aninhar. De um cheirinho de mulher ao amanhecer.
Um dia, seu amigo Luís o convidou para ir numa seresta. Uma seresta de caridade, dentro da igreja do bairro, para levantar fundos e terminar sua construção. Porque era o dia em que fazia aniversário, ele foi. Chegou às 11 horas, quando a banda começava a tocar, de camisa nova, estiradinha, e água de de barba perfumando-lhe o rosto liso.
Sentou-se com Luís e tomaram algumas cervejas, observando os casais deslizarem no salão. Quando Luís se levantou para falar com outro colega, revelou uma morena bonita sentada atrás dele, a três mesas de distância.
Wallace deu uma batucada tímida na mesa de latão, olhando de baixo, tentando disfarçar.
- Ela não era aquela coisa linda demais, que chega cansa de olhar. Mas era uma cabôca que atraía assim mesmo, que um homem não podia ignorar. Tinha o cabelo cacheado, comprido assim, descendo pelas costas. Uns olhos escuros, daqueles que a gente tenta entender se é castanho, se é preto. Era uma formosura só num vestido florido. Não digo que foi amor à primeira vista, mas fiquei encantado, querendo ver de perto.
Ele foi no banheiro, passou uma água no rosto e respirou confiante, tomando coragem para falar com a morena.
De volta ao salão, viu por entre as pessoas Luís conversando com ela. O vestido estampado balançava no balanço de quem pondera alguma decisão. Wallace sentou e voltou a observar a movimentação com olhos tristonhos.
Eram duas da manhã quando Luís desistiu da conversa e voltou para a mesa.
- Vamos embora? Ele perguntou.
Wallace aceitou, pensando que já tinha perdido a noite mesmo e não queria voltar muito tarde.
No carro, a caminho para a casa do amigo, disse:
- Mas rapaz, você quis ir logo... Eu ia dizer pra banda cantar meus parabéns.
- E comé que você não me avisa que hoje é seu aniversário? Vamo voltar, então! Faz a volta aí.
- Ah, não. Agora deixa.
E perguntou o que tinha acontecido com a morena. Luís contou que conversou um bocado, mas ela não quis nada com ele.
- Também, o cara foi logo chamando pra ir no apartamento dele, é mole? Ela não quis, claro.
Na semana seguinte, um colega de trabalho de Wallace lhe comentou que soube da sua simpatia pela moça.
- O nome dela é Ana, disse. É minha vizinha. Eu podia fazer a ponte entre vocês dois.
Ele ficou em dúvida, pensando na sua demora do dia da seresta. Então o colega sugeriu:
- Faz assim, ó: eu dou seu telefone pra ela e se ela quiser te liga, tá bom?
Ele concordou.
Era fim de tarde de sexta-feira quando atendeu a ligação.
- Oi, tudo bom? Aqui é Ana, da seresta.
- Oi Ana! Nem achei que você fosse ligar mais, menina.
- Pois é... você é o amigo de Luís, um escurinho, né?
- Escurinho, não! Pode chamar de negão mesmo! Riu-se.
Riu quando falou com a moça e quando me contava.
Marcaram de se encontrar no dia seguinte, numa praça perto da igreja da seresta.
Ele ficou dentro do carro, esperando ela chegar. Ana vinha com um moleque de uns nove anos pela mão. O olhar esperto como o dela. Wallace se preocupou logo: - Mas já vem com filho?
Saiu do carro, o sol o cegou por um segundo. Foi até Ana, sentada meio tensa num banco.
- Oi Ana, eu que sou Wallace, que você falou no telefone.
Ela levantou e falou com ele dando dois beijinhos. Tinha cheiro fresco de praia e planta, tudo junto.
Foram numa sorveteria, Wallace pensava em distrair um pouco o menino. Ana contou que Alexandre era sobrinho dela, que havia levado o garoto por medo de ir sozinha.
- Mas imagine, como um menino de nove anos que saía correndo atrás de qualquer arraia ia poder defender ela? Agora não, que cresceu e ficou um homão. Mas naquela época...
Eles conversaram, Wallace disse que estava interessado em compromisso sério.
- Eu já tinha passado da fase de mulherengo, sabe?
Ela disse que também não queria ficar só de paquera. Mas Wallace voltou para casa desanimado por causa da guarda do menino, o olhar pescando todos os movimentos.
Uns três dias depois ligou para a morena, só pra ver no que dava. Ela atendeu com a voz feliz, de quem está com o coração acelerado. E aí o coração dele, do outro lado da linha, também pulou. Então marcaram de ir numa matinê no dia seguinte. Ana apareceu sem Alexandre. Dessa vez só levava na mão um guaraná, completado pela pipoca de Wallace.
- Eu era vinte anos mais velho que ela e me sentia um menino.
Começaram a namorar firme. Três meses depois casaram-se na igreja da seresta, que já estava construída.
- E lá se vão dez anos, minha filha...
- E como o senhor ainda diz que não teve sorte no casamento?
- Não, isso eu falei do primeiro, que acabou há mais de quinze anos. Esse não é casamento, é namoro até hoje.